segunda-feira, 22 de junho de 2009

O escolhido.





Já era noite. Noite adentro. E o jovem discípulo passava seu tempo vasculhando coisas pelas estantes, pelos amontoados de caixas, pilhas de obras inacabadas, desenhos, rascunhos, histórias intermináveis. Sem perceber, uma nuvem de morcegos aproximou-se daquela cobertura. O silêncio da noite, o ar frio e a escuridão do beco, somente ouvia-se o canto de uma coruja e uma lamparina que emitia sinais fracos de um brilho ofuscado pela neblina. O rapaz intertido em seu mundo, apaziguado, ciente de sua inquietude perante um universo incômodo, estava insatisfeito, não saberia que horas depois estaria vivenciando uma outra experiência. Começou a sentir algo estranho, como se alguma presença fora do teu controle estivesse prestes a acontecer. Como num susto, fora tomado por um grande empurrão, um soco na nuca, ou uma queda repentina de pressão. Não saberia ao certo. E teu corpo lentamente foi caindo ao chão. Suas mãos trêmulas a escorregar pelos azulejos da parede da cozinha. Até sua cabeça bater no chão e o sujeito apagar. O sangue da batida, a ferida na testa, outra precisamente no pescoço, começaram a sangrar. E um sangue vermelho vivo, de um corpo jovem, derramando lentamente por aquele piso branco, misturando com as sujeiras, os vermes minúsculos, coagulando com o frio da madrugada. A cabeça do jovem. Ah, as idéias que agora brotavam dalí. Aquele corpo ainda quente e a cabeça à pensar. Sentiu algo quase inenarrável. Como num mundo surreal, distante, como se estivesse sob o efeito de um LSD, teve delírios. Estaria inconsciente! Estaria em sono profundo? Agora, seu corpo repousava. O sangue da ferida, após derramar muitas gotas de sangue e deixar uma poça grande pelo chão, como se fosse uma pincelada calcada de vermelho chinês, daria por estancar. E por milagre, aquele corpo ainda quente sobrevivera por horas, talvez dias, talvez semanas. O jovem finalmente saiu do mundo que o incomodava. Tomava contato com seus sonhos mais distantes, mais obscuros, mais profundos. Como se algo rompera duma casca de ovo. Aqueles mitos. Aqueles medos. Tudo tomava uma realidade diferente. Eram outras sensações. Eram outras emoções. Já não sabia mais o que era. Apenas dormia. Mas parecia sonhar acordado. Estava mergulhado em seu próprio pesadelo. O que tomara a vida daquele jovem por tanto tempo? O corpo não reagia mais. Somente um coração que batia, um pulmão que respirava e um cérebro confuso de idéias ia mergulhando cada vez mais fundo. Não queria acordar. Não conseguia ter forças para acordar. Ele agora estava sob controle de algo diferente. Aquilo realmente trouxe o jovem para um mundo que ele não conhecia. E ele queria conhecer um pouco daquilo. Ele talvez desejou aquilo. Estava disposto a conhecer este novo mundo. Sem regras. Sem fronteiras. Sem leis. Onde a filosofia da sobrevivência, a chave, era apenas seguir adiante. Descalço e com frio, medo, surpreso e assustado, aquele rapaz andava pelo deserto, o chão de terra batida, as árvores altas e secas, e ninguém mais. Nem uma pista para onde tudo aquilo terminaria. O jovem agora com seu corpo quase seco, cabeços e barbas compridas, olhos vermelhos e com a boca seca, começou a ganhar asas e penas. Começou a sentir que poderia voar. Seria a única forma de sair daquele deserto. Para procurar uma resposta, teria de enfrentar o desafio de voar. Teria que erguer aquelas asas pesadas com toda sua força e olhar para o céu. Mas não existia céu. Agora, não existia mais chão. Ele estava caindo. Sua temperatura diminuindo. Estava sem chão. As asas pesadas e úmidas. Lembrou de gritar. Mas só conseguia sussurrar. Não conseguia erguer seu corpo, suas asas pesavam, sentia fome e frio. E o sol escaldante. Sua temperatura começou a melhorar. Parecia que estaria à receber ajuda. Lembrou do teu mestre. Lembrou de sua casa. Lembrou da sua vida pacata, medíocre, sem graça. Pensou em desistir de tudo. Não sabia mais como virar a cabeça. Não queria olhar para trás. Não conseguia olhar adiante. Como se num sopro de misericórdia, pediu ajuda. Gritou por socorro. Pensou que estaria numa coma profunda e que tudo aquilo era sonho. No começo, gostava da experiência. No começo, tudo era fantasia e sonho. Até perceber que sua vida corria perigo. Quem estaria buscando a sua alma? Quem estaria desejando sua vida? Ele não sabia. E sem menos esperar, fincou os pés no chão, e como se fosse uma areia movediça, começou a afundar. Até que apenas sua cabeça e parte das asas e braços ficaram para fora. O jovem estava morrendo, lentamente, despedindo da sua vida. E mergulhando no teu abismo, no teu abismo profundo, saltando em queda lenta duma altura jamais vista, jamais experimentada. E por dias o jovem sentia a mesma sensação, perdido e sem conseguir encontrar alguma resposta, ele queria alívio, salvação, voltar para seu mundo real. De repente, seu corpo começara a reagir. Ele começou a mexer lentamente aqueles dedos longos, aquela mão magra, o corpo tremendo, sentindo frio, começou a descolar o rosto frio daquele sangue coagulado no chão frio de sua cozinha. Ele começou a mexer, a querer levantar. Aos poucos fora retomando a consciência. Quando já estava acordado, viu diante de ti um homem muito mais velho. E que lhe ofereceu um líquido quente, viscoso, vermelho. O jovem tomou, mesmo caído no chão, conseguiu beber um pouco daquilo. E foi reanimando. O jovem tentou lentamente ficar em pé. Mas só conseguia ficar de joelhos. E o senhor antes mesmo de virar as costas e ir embora, disse que o jovem deveria escolher. Sim, o jovem deveria escolher seguir uma nova vida, como numa missão, ou voltar pro seu mundo pacato. O jovem daquela cobertura, do alto daquele prédio, teria uma chance. E o velho senhor disse-lhe que teria apenas uma chance. Caso contrário, entenderia. Partiria sem nunca mais voltar. E o jovem ficaria naquele mundo teu. E muitas dúvidas surgiram naquele momento. O que ele tornaria caso dissesse que sim? E se dissesse que não, aquele senhor estranho, excêntrico, com aparência de quem viveu muito tempo, deixaria sua vida em paz? Não sabia mais o que fazer. Queria voltar pro sonho, voltar a dormir por dias e noites sem preocupar com nada. E lembrou que teria uma chance. De poder fazer escolhas. O velho começou a dar meia volta, parou de mexer os anéis das mãos. A noite estava acabando. Não queria voltar outra vez. Deixou uma pequena jóia entre as mãos do jovem e disse que aquilo era uma proteção. Disse para nunca abandonar aquele objeto e que este deveria ficar exposto em teu peito por todas as horas de todos os dias e para sempre. E disse ao jovem que somente nos andares mais altos dos prédios moram os vampiros da noite. Aqueles que sugam as energias dos fracos. Porém, aquele jovem foi escolhido. Aquele jovem agora não tinha mais escolha. Ele ganhou o poder que tanto procurava. E o senhor começou a desaparecer diante da visão do jovem. E a vida começou a tomar conta novamente do teu ser. Começou a pensar em tudo novamente, incomodado com tudo novamente. Percebeu que jamais teria tanta força como agora. E lembrou que morava numa cobertura, num andar mais alto daquela região, num prédio antigo, velho, decadente do centro histórico da cidade grande. De repente, o jovem percebeu que ganhara outra sensibilidade e poderia ouvir tudo por distâncias jamais imaginadas. Confuso. Estava confuso. Sentia náuseas, tonturas. Ouvira vozes. Só tinha vontade de beber mais um pouco daquele líquido. Queria novamente a sensação renovadora da substância. Seu corpo começou a deixá-lo fraco novamente. Foi caminhando a passos lentos e sem perceber, caiu por cima do sofá da sala e mergulhou em outro sono profundo. Voltou a dormir. Voltou pro sonho.

Nenhum comentário: