quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Psicose 4:48



Filha da Revolução : Psicose 4:48


Hoje, tomei coragem para ver esta peça no Satyros 2. Exatamente, porque ver as peças desta dramaturga inglesa - Sarah Kane - requer muita atenção e fôlego. E, sobretudo, coragem. Psicose 4:48 é um texto ao mesmo tempo poético e também visceral, rude, ácido. É como você levar um tropeção, cair no chão com toda força, sentir amargamente a dor, xingar com toda raiva o objeto culpado, viajar naquele sentimento por alguns instantes, chorar, levantar-se e dar uma boa gargalhada sobre “o que” o destino lhe preparou. E ir embora. Tem a culpa, a ironia, a dor, o sentimento, o arrependimento, a ingenuidade, a maldade, o sagrado, o profano, está tudo ali. E que é humano.
Eu conhecia o texto porque vi uma outra encenação desta peça lá no Sesc Belenzinho ( 2004? ), com atuação da atriz Luciana Vendramini no papel da "paciente". Anteriormente, do mesmo diretor Nelson de Sá, pude assistir uma leitura da peça no teatro Augusta. Desta vez, com o grupo curitibano, minha surpresa ficou pelo tanto que mergulhei nesta outra proposta de encenar Psicose. Porque tudo ali atrai como imã. O espaço em formato de caixa preta do “Satyros 2” ficou ainda mais claustrofóbico e, por conta da cenografia quase limpa, lhe sugere um quarto de uma clínica psiquiátrica. Ou, também, uma sala onde o médico conversa com sua paciente em estado de insanidade, loucura e momentos de lucidez.
Sarah Kane escreveu esta sua última peça antes de cometer suicídio. O título faz referência ao horário que, comumente, pessoas cometem suicídio. O número “4:48” é um trocadilho. Outra possibilidade é que somando tais números chega-se ao 16. Que é 1+6=7. Na numerologia, este número tem seus significados. Sarah faz referência principalmente ao número 7 da camisa que o jogador inglês David Beckham usava quando jogou no clube Manchester United. Era fã do jogador. Percebam quando Rosana Stávis ( estupenda atriz curitibana ) em um certo momento da peça, já ao chão, fala alguns números multiplos de 7. Eis a referência. Uma das cenas que mais gostei foi quando fala sobre o sonho em que o médico lhe deu 8 minutos de vida, depois da paciente ficar mais de 30 minutos na sala de espera. Outra referência ao universo da dramaturga é a trilha sonora composta de RadioHead, Björk, Joy Division e Sex Pistols. Rosana Stávis tem um poder de atuação e encenação impressionante. O que vemos ali é um personagem, de longe, dos mais impactantes e convincentes que já pude ver. Seu trabalho é honestíssimo tanto com o texto quanto técnicas que autenticam uma qualidade sublime de atriz e da direção. O texto tem uma poesia que na fala da atriz ganha uma dimensão ainda maior. Que tanto pode nos causar medo e angústia, quanto paixão e ódio. É comovente, dolorido, sangrento e belo! A estética, a forma, a beleza, não deixa de ser também uma obra visual, vamos montando aquele quebra-cabeça maluco da personagem, entrando no teu universo, vivendo junto à ela aqueles momentos de solidão, dor, angústia e depressão. É um universo de um ser que vive um estágio agudo da depressão, da doença e que busca muitas respostas com seus diálogos. Verdadeiros monólogos tristes. Também, traz algumas perguntas e outros momentos sugere afirmações. É uma filha da revolução. Não foi só a década de 80 que teria esta ambiência depressiva. Mesma coisa nos tempos atuais. O texto também é político e religioso. Questiona e duvida de Deus, do amor, do direito de viver dignamente. De quem não conhece muitas coisas. Exatamente pela doença, pelo fato de estar encurralada, aprisionada em tantas perguntas sem respostas. Uma das frases mais faladas pela personagem é tanto afirmação quanto pergunta. “O que você dá aos seus amigos que faz com que eles sejam tão fiéis com você ?” São as melhores perguntas que nos ensinam a encontrar boas respostas. Na vóz da personagem, tem um tom ácido ora de humor. O texto é muito sensível e claro em alguns aspectos. Em outros momentos, nos deixam com um nó na garganta. Porque ficamos sem saída nesta prisão que Sarah Kane nos coloca. É todo um universo que incomoda, introjetamos, sem tempo de piscar. E a atuação dos atores é muito natural e convincente. Num certo momento, a paciente parece dizer que é virgem. Uma futura “virgem suicida”. O que sugere o filme de Sofia Coppola lançado em 1999, ano que Sarah escreveu Psicose. Apesar de Sarah trabalhar elementos do teatro absurdo, esta direção foi cuidadosa em dar muito mais humanidade aos personagens do que, por exemplo, estereotipá-los. É uma relação médico e paciente e nada mais. Parece-me que um personagem sugere projeção do outro. Pois, é tudo tão limpo e trabalhado neste jogo de personagens. Como quando a paciente fala sobre o amor ao médico no momento em que ele vai embora da sala. Noutro, disse que amou alguém mesmo quando odiava. É um jogo que rola entre eles. Até o suicído da paciente. Sarah Kane suicidou-se com um cordão de tênis All Star enrolado ao pescoço. A paciente não aparece em cena de suicídio. Fica claro no texto falado ao final da peça, quando ela sai de cena por uma das portas. E tudo acaba. Menos nosso espanto diante de uma dramaturgia tão inteligente e universal. A peça segue em um ritmo não linear, nos deixando no final com uma sensação de que saímos de uma roda gigante ou chapéu mexicano, tontos e cheios de hematomas. Porém, é apaixonante.

Psicose 4:48 : Em cartaz no “Teatro dos Satyros 2”
Com : Marcos Damaceno Companhia de Teatro; Texto: Sarah Kane; Tradução: Laerte Mello; Direção: Marcos Damaceno; Elenco: Rosana Stavis e Marcelo Bagnara; Iluminação: Nadja Naira; Cenografia: Marcos Damaceno; Figurinos: Maureen Miranda; Sonoplastia: Vadeco.


James MacDonald escreveu: "O que ela fez foi gentil, verdadeiro e inteligente. Ela também adorou música, e um dia um … pode sentir-se impelido a escrever uma tese sobre o número de linhas nas suas peças que foram na verdade copiadas das obras de Joy Divison, dos Pixies, Ben Harper, Radiohead, Polly Harvey, dos Tindersticks, e ainda Elvis Presley. Os seus deuses do teatro eram Beckett, Pinter, Bond, Potter, mas ela escreveu directamente da sua própria experiência e do seu coração.”

"Sarah Kane nasceu em Essex, em 3 de Fevereiro de 1971. Seus pais eram jornalistas e profundamente religiosos. Ela estudou teatro na Universidade de Bristol, onde se formou. Tendo feito, depois, uma especialização em Artes (Master of Arts) na Universidade de Birmingham. Sofreu de depressão e esteve num hospital por alguns períodos de tempo, saindo e entrando regularmente. Uma tentativa de suicídio com comprimidos para dormir não foi sucedida. Porém, alguns dias depois, em 20 de Fevereiro de 1999, Sarah Kane enforcou-se no hospital onde estava realizando tratamentos."


_Umberto.Alitto

Um comentário:

Chico Ribas disse...

Umberto, não sabia que sarah gostava de radiohead e björk...eu adoro esses dois em específico. Diante desse seu texto fiquei com mais vontade de ver a peça e com certeza estarei lá.
Sarah é maravilhosa. Nem tenho muito mais o que falar depois disso tudo que vc já disse.

Obrigado Umberto, por esse blog incrível.

Abraço

Chico